A real noção dessa responsabilidade que temos sobre os nossos atos é tão gigante e intensa que, muitas vezes, não conseguimos encará-la. No entanto, se bem compreendida, ela pode ser leve, pode ser doce, pode ser vivida passo a passo. Quanto mais focada em cada pequena expressão de nosso ser, tão mais substancial e iluminada essa consciência será.
Para apreendermos um pouco dessa água em que estamos mergulhados, precisamos falar de comportamentos humanos culturalmente repassados, de geração em geração. Vamos a alguns deles:
- Para fazer valer quem somos precisamos nos sentir melhores do que o outro, desavisados de que, quanto melhor estiver o outro, melhor estaremos, posto que vivemos numa rede absolutamente interdependente.
- Em muitos momentos, ao sinal de qualquer contrariedade, sentimos, falamos, apontamos e esperamos o pior das pessoas. Seja de nós mesmos, do cônjuge, dos filhos, dos colegas com quem convivemos. Junto com a exclusão de cada um deles, empobrecemos.
- Ainda que interdependentes, cada um tem seu caminho único, exclusivo, específico a desbravar e criar. A cada interferência com intenção de controle ativo do resultado, estamos perdendo o foco (e a energia) da própria caminhada e atrapalhando ou despotencializando o caminhar do ser que nos julgamos no papel de exigir uma resposta à nossa maneira.
- Não conseguimos abraçar a sombra, os “aindas-em-aprendizado”. Então, projetamos para fora tudo aquilo que não abraçamos, integramos e conciliamos dentro.
- Agimos de um lugar de desconexão desta rede, nos conectando a um sentimento de insegurança. Desligados da Fonte, ou seja, da confiança de que existe uma Ordem Maior de Amor nos conduzindo, caímos na ilusão de que “precisamos estabelecer controle, ou tudo irá de mal a pior”.
- Assim, começamos a impor ao mundo a nossa forma pessoal de sentir, pensar e agir. Passamos a cobrar que as pessoas façam do nosso jeito, ou tudo pode dar errado.
Pode parecer cansativo, dual e incômodo reconhecer cada um desses lugares em nós... Eu sei. Mas nessas horas me convido à firmeza de persistir, pois é na sombra que estão nossos grandes aprendizados e potenciais de luz. Ao olhar para esses comportamentos e perscrutá-los com atenção e auto-amor, vamos mais além.
No contexto da ativação do melhor e do pior em nós e nos outros, conhecer esses mecanismos nos permite compreender a forma como estamos emaranhados com as pessoas que nos cercam, e como nosso campo pessoal atua sobre os deles.
A ESCOLA DA CONVIVÊNCIA
Certa vez, há muitos anos atrás, um amigo meu me disse: “Dani, estamos nesse mundão de Deus pra (gente) se relacionar (com as pessoas)”. Naquela época eu me senti muito mexida com essa frase, e ela nunca mais saiu de mim. Foi um momento de encontro com A Verdade, aquela que tanto nos toca e nos liberta.
Esses emaranhamentos, e cada um deles, são os instrumentos de que a professora Vida se serve para nos ensinar. Ao mesmo tempo que são mapa da mina, fiquemos atentos para que a gente use o tesouro e não o contrário. Quem manda em quem? Falo isso porque em muitos momentos nos deparamos com a imensa tentação de nos apegarmos aos “rolos”, nos vitimizarmos e ficarmos por ali, lambendo o chão das zonas estéreis das lamentações.
E conforme vamos nos dando conta do caminho do meio que existe entre conviver e invadir; entre estender a mão e aprisionar alguém, cobrando multas e juros em seguida; entre amar e exigir; vamos percebendo quanta riqueza temos a desenvolver em nossa própria história, e passamos a fluir e passear pelas pessoas com quem convivemos, com beleza, inteireza, admiração pelo tempo evolutivo de cada um. Enfim, com embevecimento pelos seus tempos e processos internos – sejam como sejam.
Desistimos de querer salvá-los ou apontar o melhor rumo a seguir. Num movimento de humildade, nos recolhemos tão somente ao nosso próprio – e suficiente – lugar. Tratamos de fazer o melhor de nossas vidas, deixando brilhar nossa própria luz que, como diz Mandela, é a melhor maneira de, inconscientemente, permitir que os outros façam o mesmo. Seguimos focados em amar e alegrar os caminhos por onde passamos. Espelhamo-nos uns aos outros, aprendemos com isso, mas estamos sempre focados naquilo que tão somente nos cabe.
DESCOBRINDO A BELEZA DOS “AINDAS”
Indulgência. Nesta palavra, em latim, estão os sufixos in-dulce – doçura dentro. Quando nos deparamos com algum aspecto em construção em nós e no outro, as “incapacidades-ainda”, podemos olhar também para o que já está lá. Ou seja, para a capacidade de florescer e de acertar.
Uma criança que ainda não aprendeu a andar tem em si todas as possibilidades de, amparada, poder dar um passo após o outro. Mas se os pais desistirem dela e disserem: “esta definitivamente não anda”, o esforço dela precisará ser ainda maior na vida. Os pais terão perdido a oportunidade preciosa de apostar nos “aindas” da criança. Precisamos ter calma e acreditar que nossos "aindas" serão, no tempo certo, novas realidades.
Para isso, o foco precisa estar na confiança de que a Vida que habita a todos, o Amor que de nós se serve, irá trazer as oportunidades perfeitas para que cada um, a seu tempo, floresça. Basta a gente não atrapalhar muito. E à medida que pudermos atuar no apoio dessas pessoas, não como um professor ou salvador, mas como alguém que está ao lado, incentivando, sendo belo em seu próprio caminhar e estimulando o outro a desenvolver seu próprio percurso, estaremos entregando o nosso melhor ao mundo.
Sou apaixonada pela palavra “ainda”, que sorvi da fonte de sabedoria de minha amada mamãe. Simplesmente porque o “ainda” guarda em si todas as potências do Amor em Movimento. É uma palavra que sugere: algo em mim (e no outro) está em curso e chegará lá! Simplesmente amo a liberdade, a fé e a confiança que esta palavra desperta em mim.
CONVITE A MIM MESMA (E QUE TALVEZ POSSA SERVIR, TAMBÉM, A VOCÊ)
Nesse lugar mais livre, permito-me olhar para meus processos com calma, com leveza, auto-amor, e assim fico mais forte e nutrida para olhar para cada um dos professores que a Vida nos traz. Os observo com calma, acolho suas necessidades, converso com eles num processo de profunda empatia.
Amparada pelo Evangelho de Jesus, convido-os a vivenciar – devagar – a Boa Nova e, juntos, vamos amadurecendo e ensaiando novos pensamentos, sentimentos, palavras, atitudes e hábitos.
Deste lugar, plena de auto-amor e indulgência por mim mesma, passo a ter isso para oferecer aos outros. Olhando-os com as mesmas posturas, ativo seus campos de florescimento, posto que há coerência interna em mim para tanto.
Explica-se, assim, o “como a ti mesmo” da regra de ouro de Jesus: “Ame ao próximo, COMO A TI MESMO”. O "fora" sempre nos estimula e instiga, mas ganha força dentro: ativando nosso próprio campo interior e, então, ativando o campo do outro da forma mais livre, bonita e consciente que pudermos expressar, momento a momento.
(Daniela Migliari, 26 de maio de 2017, num voo entre São Paulo e Brasília)
*TEXTO 5 DA SÉRIE*: _A alegria de co-criar o mundo com responsabilidade e amor_ – Uma reflexão sobre como ativamos o melhor e o pior em nós e nos outros.